Bem-te-vi
Um filhote de passarinho precisa de comida, abrigo e cuidados. Já todo ser humano adulto precisa cuidar de um filhote de passarinho – mesmo sabendo que ele irá embora.
Ele chegou em casa trazido por duas amigas. Juliana encontrou o filhote de bem-te-vi no chão e, conhecedora de seres alados que é, procurou pelo ninho mas ele tinha sido destruído pela chuva do dia anterior, logo viu que o bichinho não poderia ficar ali. Carol logo sugeriu um lar substituto e acreditou que eu seria um bom tutor. Trouxeram o bichinho embrulhado num pano e deixaram suas certezas e a coisinha frágil comigo.
A espécime de Pitangus sulphuratus, da família Tyrannidae, não tinha nada de tirano: assustado e bem nervoso, se encolhia ao perceber qualquer movimento. Arrumei uma caixa de papelão forrado com jornais e ofereci a papinha própria para filhotes de aves – disse que a Ju manjava de vida silvestre e, esperta, deixou um potinho da ração que tinha utilizado pra cuidar de um filhote de ave órfão. A papinha, ao ser misturada com água, tinha o aspecto de uma farinha láctea ou um “Neston”. Daí, ele ganhou seu nome: Nestor.
Sabia o básico sobre bem-te-vis: cantam algo que lembra seu nome, briguentos e territorialistas. Apareciam no comedouro de casa pra comer banana e mamão, mas largavam as frutas quando encontravam grilos, lagartas, aranha, ou até mesmo, lagartixas. Nada lembrava aquele serzinho com um bico aberto, piando muito e com uma penugem amarela e cinza.
Por pelo menos dez dias, aquele bichinho ficou na caixa improvisada, onde coloquei galhos, folhas secas e qualquer coisa que pudesse imitar a natureza. A caixa ficava aberta. Eu evitava ao máximo tocar nele, não queria que se acostumasse com humanos, já que desde o início, minha intenção era que ele se fortalecesse e fosse solto próximo do local que fora encontrado (uns dois quarteirões de casa). E por uma semana e meia, a rotina foi esta: ele piando e pedindo comida a cada 20 minutos, ficando mais esperto e começando a dar pulinhos, eu fornecendo papinha e abrigo. Cobria a caixa com um tecido no início da noite e ele ficava quietinho, só despertando bem cedo no dia seguinte. Eu lembrava da música que meu amigo de infância, o Hiena, cantava: “não temos penas, porém fome, sim / de bico bem abertos / queremos muitos insetos / a nossa fome não terá mais fim” – era uma canção daqueles antigos disquinhos de vinil sobre a história de garcinhas, mas servia muito bem pra bem-te-vizinhos.
Quando Nestor começou a ensaiar pulinhos e movimentos da asa, enchi minha cozinha (e o local que trabalho home-office) de galhos, caixas e poleiros pro passarinho se exercitar Os saltos ficaram maiores e viraram pequenos voos desajeitados. A cozinha é espaçosa e tem uma porta/janela de vidro bem grande, por onde Nestor observava as outras aves que continuavam a visitar o quintal. As refeições começaram a ser reforçadas com frutas amassadas e insetos igualmente preparados à la purée – as refeições dele, não as minha. Ainda bem que em cidades do interior existem casas agrícolas que vendem iscas vivas para pesca, como minhocas, corós e outros bichos. Lembro do primeiro voo mais longo, a primeira vez que pousou na minha cabeça (epa, evite contato, lembra?) pra pedir comida e as outras tantas que tentava bicar minha mão para que eu largasse o teclado e o alimentasse com um palito com banana amassada. Pra ele, minha mão era um tipo de bico diferente que só servia pra colocar comida na sua bocarra (ou seria “bicarra”?) aberta.
Durante este tempo, conheci pessoas bacanas que me deram dicas valiosas pra cuidar do pássaro (Oi Giulia! Oi Roberto!). Aprendi ainda mais com as madrinhas do Nestor, Carol e Juliana. Acompanhar de perto como a vida selvagem é frágil mas extrai sua força da própria natureza é uma vivência e tanto. Tinha vontade, por muitas vezes, de fazer um carinho no Nestor, conversar com ele sem ser por assobios, mas agradecer o bem que ele fazia e a vida que ele trazia praquele espaço, mas resistia pelo bem do bicho. Cheguei a pensar em amarrar uma fitinha na pata, só pra saber se algum dia ele aparecesse no quintal. Mas aquilo seria um peso desnecessário na vida de um bem-te-vi só pelo capricho de um humano.
Aos poucos, fui deixando ele conhecer o quintal, tomar banho de sol e de água, pular da cozinha pras plantas e de lá pro poleiro do comedouro dos pássaros livres. Comecei a oferecer fruta no mesmo local que as outras aves comiam, espetando com o palito pra ele ver e aprender a se virar. E deu certo. Até outro bem-te-vi, um filhote mais desenvolvido que Nestor vinha espiar e parecia tentar uma amizade.
Passaram-se trinta dias e ele se foi. Dois dias antes, Nestor voou para uma árvore no outro quarteirão, mas retornou depois de eu muito assoviar. Mas naquele dia, ele voou e não voltou. Como as despedidas são momentos delicados, o jovem bem-te-vi esperou eu atender a porta e, quando voltei pro quintal, ele não estava mais no poleiro. Ouvi seu pio/grito na mesma árvore que há dois dias ele tinha visitado, corri lá para perto mas, logo o piado estava mais longe. Dei uma volta no quarteirão mas, sabia que eu não tinha perdido um filhote de passarinho: era Nestor quem tinha ganhado o mundo.
Agradeço por ter tido esta experiência. Por encher minha cozinha de galhos e meus dias com zelo. Pela companhia ruidosa e alegre, pelas bicadas ocasionais pedindo comida, pelos saltos/voos na cozinha/mata improvisada, pelas minhas caças quase impossíveis atrás de insetos e folhas de jornal. Sou grato pelo carinho que tive por aquele serzinho, que sabia que a qualquer momento, não estaria mais ali, mas que valia cada minuto, cada papinha ou fruta amassada. Foi bom viver cada dia em sua companhia colorida e entender sua lógica própria, que não a humana. Deixou os galhos, as caixas de papelão e a saudade. Valeu cada minuto. Melhor, valeu a pena. Nestor foi um passarinho valente, amado e respeitado. Talvez o amor seja um filhote de bem-te-vi. Ou vice-versa.
Gostou do texto? Minha maior recompensa é ler seu comentário. Se, ao ler, teve uma boa sensação e lembrou de uma ou mais pessoas queridas, que tal compartilhar a leitura com elas? Pra facilitar (porque a vida já é complicada demais), vou deixar aqui os botões pra compartilhar ou deixar sua mensagem.
Alguns vídeos da passagem do Nestor pela minha casa/vida, pra você ver como o passarinho mirrado ficou forte e esperto pra encarar o mundão. Se quiser ler mais sobre, tem posts quase que diários durante os dias que ele esteve comigo e também uma coleção nos Destaques, lá no meu perfil do Instagram (clica aqui).
Para ler, ouvir ou assistir
💿O álbum “Pet Sounds” é o décimo primeiro álbum de estúdio da banda de rock americana The Beach Boys, lançado 16 de maio de 1966 pela Capitol Records. Não consigo pensar em algo que tenha mais a ver com este post. Um dos albuns mais influentes do pop/rock (pergunte aos Beatles), é recheado de canções, composições, melodias e efeitos sonoros que revolucionaram a forma de fazer música. Ouça pensando que ele foi influência para o álbum “ Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”. Se quiser ouvir uma única música, escolha “God Only Knows”.
📗O livro “Aves do Campus da Unicamp e Arredores”, dos autores Giulia B. D’Angelo, Milena Corbo, Arthur Macarrão, Carlos Henrique Almeida, Wesley Rodrigues Silva, Ivan Sazima, está fora de catálogo mas dá pra encontrar em sebos e na internet. Uma das autoras, a bióloga Giulia B. D’Angelo, me ajudou com dicas preciosas e eu só tenho agradecimentos. Segue a moça porque ela sempre tá passarinhando e ensinando a observar aves com respeito pelos penosos. O livro ajuda a pessoas urbanas a reconhecer aves que são comuns em locais mais povoados, principalmente no sudeste do país.
🎬Pasárgada, filme lançado em 2024 que ainda não assisti (vale indicar coisas que não conheço?), com a talentosa Dira Paes (diretora , roteirista e atuando no filme) é sobre uma bióloga especializada em ornitologia e que que faz uma descoberta sobre sua ancestralidade enquanto pesquisa pássaros da floresta da Mata Atlântica. Tem tudo pra ser bom.
Gostou do texto? Minha maior recompensa é ler sua opinião. Se teve uma boa sensação e lembrou de uma ou mais pessoas queridas, que tal compartilhar a leitura com elas? Pra facilitar (porque a vida já é complicada demais), vou deixar aqui os botões pra compartilhar ou deixar sua mensagem.
Se gostou e quer um aviso de quando textos novos forem publicados, subscreva gratuitamente para receber novos posts do “Memórias De Acesso Aleatório” .
Que emocionante... Amei sua narrativa. Quem sabe ele não volte um dia pra visitar vc e comer uma frutinha no seu quintal?
Passarinho! Que som é esse?